Breve análise dos sistemas processuais penais

*Gisélle Maria Santos Pombal Sant’Anna   

1. Introdução

O presente artigo tem por escopo analisar os sistemas processuais penais, apontando a distinção fundamental entre os mesmos, além de enumerar suas características secundárias.

De início, cabe ressaltar que, atualmente, não existem sistemas processuais penais puros.[1] Destarte, os processos penais adotam características tanto do sistema acusatório, como do inquisitório, se caracterizando como um sistema processual misto.

Contudo, esclarece Jacinto Coutinho, que a existência do sistema misto só poderá ser admitida formalmente, pois, segundo esse autor, sistema é um “conjunto de temas jurídicos que, colocados em relação por um princípio unificador, formam um todo orgânico que se destina a um fim.”[2]

Com efeito, os sistemas acusatório e inquisitório apresentam os princípios dispositivo e inquisitivo como unificadores, respectivamente, não sendo possível conceber a existência de um princípio unificador misto o qual sustentaria o denominado sistema misto.[3]

No que tange à distinção fundamental entre os sistemas processuais penais, a maioria da Doutrina brasileira afirma que a principal característica do sistema acusatório é a distribuição das funções de acusar, julgar e defender entre sujeitos distintos, enquanto o sistema inquisitório apresenta a concentração das funções acusatória e de julgamento nas mãos do juiz.[4]

Contudo, não basta a separação das referidas funções entre órgãos distintos, sendo relevante a análise de outros aspectos para se considerar um sistema processual penal como acusatório ou inquisitório, conforme será abordado adiante.[5]

Em relação às características secundárias de tais sistemas, a Doutrina apresenta um certo consenso ao enumerá-las, sendo que as maiores discussões ocorrem em torno do critério determinante para que um sistema seja considerado acusatório ou inquisitório. 

2. Distinção Fundamental

Conforme afirmado alhures, para a maioria da Doutrina, a separação das funções de acusar, julgar e defender entre órgãos distintos é o critério determinante para se considerar um sistema processual penal como acusatório ou inquisitório.

Com efeito, para Gustavo Badaró, a condição sine qua non para o reconhecimento de um processo penal acusatório é a separação das citadas funções, com as partes em igualdade de condições e julgamento por um juiz imparcial.[6]

Contudo, entende-se que a divisão das atividades de acusar, julgar e defender, é importante para o sistema acusatório, porém não pode ser considerada, por si só, para se determinar a distinção entre os sistemas processuais penais. Isso porque “não basta termos uma separação inicial, com o Ministério Público formulando a acusação e depois, ao longo do procedimento, permitir que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova […]”[7], devendo este permanecer eqüidistante das partes (actum trium personarum), para que não haja comprometimento da sua imparcialidade. [8]

                 Se o juiz determinar a produção de uma prova de ofício, irá desenvolver uma consideração psicológica acerca da mesma, antevendo o resultado que dela pode advir.

                 Produzida tal prova, em sua decisão, o órgão julgador, provavelmente, apenas irá considerá-la, sendo desnecessária a atividade das partes com o fim de formar o seu livre convencimento, restando fatalmente desrespeitadas as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Cabe destacar, ainda, que uma das finalidades do processo penal é a reconstrução histórica dos fatos, sendo a atividade probatória muito relevante, logo, outro não poderia ser o critério para distinguir os sistemas processuais penais, senão o da gestão da prova.[9]

De encontro a tal posicionamento, Ada Grinover entende que o conceito de processo penal acusatório nada tem a ver com a iniciativa instrutória do juiz no processo penal, a qual se relaciona com o adversary system, sendo que o sistema acusatório pode adotar o adversary ou o inquisitorial system.[10]

3. Sistema Acusatório

Conforme o critério determinante que se adote para distinguir os sistemas processuais penais, será admitida ou não a atribuição de poderes instrutórios ao juiz dentro deste sistema.

A maioria dos autores que defendem a distribuição das funções entre órgãos distintos como o aspecto fundamental do sistema acusatório admitem a iniciativa probatória do juiz, por entenderem que não há comprometimento da imparcialidade do magistrado. [11]

Contudo, historicamente, as partes aparecem como protagonistas no sistema acusatório, cabendo a estas produzir a prova de suas alegações, devendo o juiz permanecer inerte, a fim de que sua imparcialidade seja preservada.[12]

O princípio do juiz natural, também característico do sistema acusatório, garante essa imparcialidade, não se resumindo apenas ao afastamento do órgão julgador do exercício da ação penal, sendo necessário que o mesmo não esteja envolvido com uma das versões para que possa escolher entre as alternativas apresentadas pela defesa e pela acusação.[13]

Predominam no sistema acusatório o contraditório, a publicidade e a oralidade. Quanto a esta última, esclarece Geraldo Prado, que não se resume à predominância da palavra falada, devendo propiciar o contato direito do juiz com as provas, facilitando também a verificação dos papéis exercidos pelos sujeitos processuais.[14]

O réu só poderá ser considerado culpado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, estando presente assim, o princípio da presunção de inocência. Defesa e acusação estão em igualdade de posições, havendo julgamento por um júri popular.

O processo acusatório preocupa-se em garantir os direitos fundamentais do acusado, sendo que o fato de o acusado e o seu defensor poderem influenciar a decisão final faz com que os mesmos sejam sujeitos de deveres, direitos, ônus e faculdades, existindo o devido processo legal, se ambas as partes tiverem a possibilidade de convencer o juízo.[15]

Em síntese, Aury Lopes Júnior elenca as seguintes características do sistema acusatório na atualidade: funções de acusar e julgar são distintas; iniciativa probatória atribuída às partes; juiz como terceiro imparcial; “tratamento igualitário das partes”; “procedimento em regra oral”; publicidade; contraditório e ampla defesa; ausência de tarifa probatória; livre convencimento motivado; coisa julgada; duplo grau de jurisdição.”[16] 

 3.1 Adversary e Inquisitorial System

A análise dos sistemas anglo-saxão se mostra relevante, tendo em vista o entendimento de Ada Grinover, explicitado acima, no sentido de que os poderes instrutórios do juiz estão relacionados a tais sistemas, podendo o sistema acusatório se caracterizar como adversarial ou inquisitorial system.

O adversary system se caracteriza como um processo de partes, onde a atividade probatória é deferida às mesmas de forma exclusiva, devendo o juiz preservar uma posição passiva.

Destarte, toda iniciativa processual é atribuída às partes que realizam, de forma competitiva, a introdução de provas no processo, não importando apenas o acertamento dos fatos, mas, principalmente, “a lisura no encontro dialético entre as partes.”[17]

Assim como no sistema acusatório, há separação entre as funções de acusar, julgar e defender, contudo os referidos sistemas não se equivalem.

O adversary system, da forma como é estruturado, não tem por escopo o alcance da verdade, e sim a solução do conflito instaurado entre as partes, sendo que será vitoriosa a parte mais esperta. O que importa é a “correta atuação do procedimento de confronto dialético das partes contrapostas”.[18]

Marcos Zilli ensina que  

o sistema adversarial, em um Estado Liberal, marcado que é pelo controle das partes processuais sobre a marcha processual, constituiria um meio extremamente eficaz de prevenção contra qualquer abuso do poder estatal por ato dos seus representantes, dentre os quais o juiz, ficando afastada a possibilidade de formação de juízos convicção prematuros sobre uma dada prova os quais poderiam dar causa a conclusões apressadas, invariavelmente impossíveis de serem superadas.[19] 

Já no inquisitorial system, o juiz tem papel de destaque, identificando-se com o sistema inquisitório no sentido de que compete ao juiz a condução do processo, podendo, inclusive, determinar a produção de provas de ofício. Seria o antônimo de processo dispositivo.

Cabe ressaltar que no adversary system, o acusador pode dispor da pretensão punitiva através de bargaining ou deixando de formular a acusação.

Atualmente, segundo Gustavo Badaró, a tendência é que o adversary system permita a determinação de provas de ofício, pois a falta de poderes instrutórios do juiz impede o esclarecimento da verdade e, por algumas vezes, a obtenção de uma decisão justa.[20]

Marcos Zilli nos apresenta as principais críticas dirigidas a esse sistema, quais sejam, abusos no controle das partes sobre a instrução, enfoque equivocado na busca da verdade, ineficiência do processo ‘adversarial’, desigualdade entre partes.[21]

4. Sistema Inquisitório

O sistema inquisitório, baseado na política de segurança pública, busca realizar o direito penal a qualquer custo, ressaltando o poder de punir estatal.

Assim, o juiz se apresenta como titular de um direito de ação, podendo além de exercer a ação penal, produzir provas de ofício e também recorrer de ofício.

O juiz obtém o material probatório de forma predominante na busca da verdade real, reunindo as funções de acusar e julgar, cabendo-lhe conseguir a confissão do acusado, a qual é considerada a melhor prova, dentro do sistema da prova tarifada, predominando o princípio da presunção da culpabilidade.

O juiz é o responsável pela investigação, caracterizando-se, assim, como um verdadeiro inquisidor. Não há que se falar em partes em tal sistema, sendo o réu objeto do processo e não sujeito de direitos. Não há contraditório e o processo se inicia de ofício. Predomina a escritura e o segredo, havendo restrição da liberdade pessoal do acusado.  

5. Sistema Misto

Historicamente, o sistema processual penal misto foi consagrado com o Code d’Instruction Criminalle, de 1808, na França, compreendendo as fases de investigação e de juízo.

Destarte, na fase investigatória, há o predomínio de características do sistema inquisitório, principalmente, a presença da escritura, do segredo e da iniciativa judicial.

Já na fase do juízo, estariam presentes elementos concernentes ao sistema acusatório, quais sejam, o contraditório, a oralidade, a publicidade, juízes populares e livre apreciação da prova. 

6. Conclusões

Considerando os argumentos aventados, pode-se afirmar que, na atualidade, os processos penais apresentam características tanto do sistema acusatório como do sistema inquisitório.

O critério determinante para distinguir os referidos sistemas, tendo em vista a própria finalidade do processo penal, é o da gestão da prova, não sendo suficiente a separação das funções de acusar, julgar e defender entre órgãos distintos.

Conforme ressaltado, caso exista a possibilidade de o juiz determinar a produção de provas de ofício, restará fatalmente comprometida a sua imparcialidade, o que impede a reconstrução histórica dos fatos e viola garantias do acusado, como o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.


Notas

[1] Gustavo Badaró destaca que os ordenamentos jurídicos aspiram ao sistema acusatório, amoldando-o à realidade social de cada país. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 107/108.

[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 16.

[3] Da mesma forma, Aury Lopes Júnior, em crítica à classificação do sistema processual penal brasileiro como misto, nos esclarece que “[…] a partir do reconhecimento, de que não existem mais sistemas puros […]”, devemos identificar o princípio informador de cada sistema, para proceder à respectiva classificação como inquisitório ou acusatório. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 3. ed. rev. atual. e aum. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, Op. cit., p. 156.

[4] Nesse sentido TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de Processo Penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 2, p. 01 e GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal Acusatório. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 347, jul./ago./set. 1999, p. 3.

[5] Geraldo Prado entende que a diferença entre os referidos sistemas pode ser observada de acordo com os atos praticados pelos sujeitos processuais, que irão desenvolver funções diversas de acordo com o sistema em que estiverem inseridos. PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, Op. cit., p. 104.

[6] Op. cit., p. 108/109.

[7] LOPES JR., Aury. Op. cit., p. 172.

[8] Flávio Meirelles Medeiros defende que a distinção entre os dois sistemas pode ser observada de acordo com os poderes conferidos ao juiz. MEDEIROS, Flavio Meirelles. Dificuldade de atuação dos limites jurídicos à livre apreciação da prova no chamado processo penal acusatório. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – Ajuris, Porto Alegre, v. 21, n. 62, p. 319-330, nov.1994, p. 328.

[9] Nesse sentido, Jacinto Coutinho defende que a “característica fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado.” Logo, para esse autor, os princípios unificadores dos sistemas processuais penais são determinados pelo critério da gestão da prova. Op. cit., p. 24.

[10] Op. cit., p. 4.

[11] Gustavo Badaró fala em um modelo acusatório atenuado, por permitir que o juiz produza provas de ofício. Para o citado autor, não há incompatibilidade entre a determinação de provas de ofício pelo juiz e o sistema acusatório, visto que tal previsão permite uma melhor reconstrução dos fatos e, conseqüentemente, uma maior aproximação com a verdade. Assim, poderá ser atingida a verdade que seria alcançada com o sistema inquisitório, contudo sem desrespeitar os direitos fundamentais. Op. cit., p 112/125.

[12] A origem do sistema acusatório remonta à Grécia Antiga, devido à participação dos cidadãos gregos, tanto no exercício da acusação, como no da jurisdição. No mundo antigo, o processo penal era predominantemente acusatório, sendo a acusação imprescindível. Cabia ao acusador, que, nos casos de ação privada, era o ofendido ou, nas hipóteses de ação popular, poderia ser qualquer pessoa, apresentá-la por escrito, acompanhada das respectivas provas. Contudo, diante de alguns problemas apresentados pelo sistema acusatório em sua primeira fase histórica, como a impunidade do criminoso, a existência de acusações falsas, dentre outros, a partir do século XII houve um predomínio do sistema inquisitório. Para conhecer o histórico dos sistemas processuais penais, ver ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes. O Processo Criminal Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1959, v. 1.

[13] PRADO, Geraldo. Op. cit., p. 109.

[14] Ibid., p. 154.

[15] PRADO, Geraldo. Op. cit., p 109.

[16] Op. cit., p. 159.

[17] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 40.

[18] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Op. cit., p. 132.

[19] ZILI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 45.

[20] Op. cit., p. 133.

[21] Op. cit., p. 49.


Referências Bibliográficas

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BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

 BARROS, Antonio Milton de. Processo Penal segundo o Sistema Acusatório – os limites da atividade instrutória judicial. Editora de Direito, 2002.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

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PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de Processo Penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 2.

ZILI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

 

 


 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

GISÉLLE MARIA SANTOS POMBAL SANT’ANNAServidora Pública da Procuradoria Regional da República da 2ª Região

 

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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