Brasil: algo mais que uma crise econômica

* Atahualpa Fernandez

Nullius addictus iurarae in verba magistri (Horacio)

A convicção de que, em grande medida, a crise econômica tem um transfundo mental não é nem uma mera intuição, nem uma hipótese sem qualquer contrastação empírica. O prêmio Nobel de Economía de 2002 foi atribuído a Daniel Kahneman, e as razões de ser distinguido desde Estocolmo descansam em que o professor Kahneman dedicou sua vida profissional à análise dos componentes psicológicos que intervêm nas decisões econômicas. Em todas elas.

Sendo assim, estou convencido de que seria bom, razoável e aconselhável que as autoridades que regem, com escassa competência, os destinos monetários, financeiros e, em suma, econômicos de nosso País optassem ao menos por estar caladas – ou, como diria Wittgenstein, deveriam “ guardar silêncio”. Cada vez que abrem a boca é para augurar desgraças, predizer catástrofes, aventurar misérias e contribuir de tal sorte a que se acentue o medo e se generalize cada vez mais a histeria coletiva diante da crise econômica mundial.

Mas o pior de tudo é que não são os únicos em suas apreciações pessimistas. Seja qual for o especialista ou analista de plantão ao que se consulta, não param de sair sapos ou infaustos discursos de seus lábios. Bem curioso é que, há um ano, esses mesmos gurus – por malícia, ignorância ou ingênuo otimismo- chamassem irresponsável a quem aventurara a possibilidade de uma recessão próxima. E embora se tratasse de um prognóstico bem fácil de fazer ( depois de tantos anos de excessos e descalabros crescentes no mercado financiero, era inevitável que o pêndulo invertera seu vai-e-vem), o certo é que todos pareciam viver “no melhor dos mundos possíveis”, para citar Leibniz. Mas a súbita, inesperada e imprevista crise se fez fato “e habitou entre nós”, gerando e dando lugar a um sobressalto em grande escala.

Ninguém põe em dúvida a crise brutal que está destruindo a economia de todo planeta, mas insistir com desproporcional veemência nas desgraças presentes e nas que estão por vir não constitui, por si só, razão necessária e suficiente para continuar dando-lhes tanta credibilidade. De fato, parece até mesmo razoável inferir que, se erraram tão estupidamente no prognóstico da crise, com mais razão encontram-se suscetíveis de maiores equívocos na previsão de seus efeitos. Sair agora com o terror como guión, igual a um filme de psicopatas, não só não tem mérito algum senão que tão pouco é o papel que se supõe deve ter qualquer político ou entendido que povoam os gabinetes do governo e a mídia.

O que haveriam de fazer não é o diagnóstico – ao alcance, diga-se de passo, do mais iletrado dos cidadãos -, senão a prescrição das medicinas oportunas, de fundo e não meramente sintomáticas. O que se espera deles (do governo e dos especialistas) é que nos digam onde encontrar as soluções, por mais que cada vez pareça mais evidente que eles mesmos não sabem. E a maior ironia nessa confissão indesejada de ignorância procede dos mesmos organismos com visão apocalíptica. A melhor profecia até o momento é a de que sairemos dessa crise, embora não se saiba exatamente quando.

Mas para anunciar semelhante profecia não são necessários nem títulos de especialistas nem cargos públicos que resistem a qualquer crise. Qualquer um pode apontar-se a ela, sem olvidar a mais importante das verdades: suceda o que suceda, serão os cidadãos honestos os que pagarão o pato. Por quê? Pelo simples fato de que aqueles que cotinuam a beneficiar-se da permissibilidade e da apatia do governo não entendem de crise. Afinal: Por que nunca se falou em crise econômica quando o salário mensal de milhões de brasileiros sequer consegue ultrapassar o umbral dos 500 reais? Por que a preocupação pela crise econômica ocorre precisamente no momento em que os maiores afetados são os grandes empresários, os investidores e especuladores profissionais? Por que parece não haver tanta preocupação com a crise econômica quando o tema são os gastos em campanha eleitoral? O certo é que nunca na história do País houve tão poucos ricos e nem tantos pobres tão pobres. De fato, se bem pensado, já faz algum tempo – para não dizer demasiado – que alcançamos sobre a situação econômica, política e social do País uma situação de stress, reprovável e feia.

Daí que qualquer discurso que use imagens ou argumentos de “crise econômica” como camuflagem para dissimular os problemas de fundo que atravessa o País deveria pesar muito na consciência de todos os que se dizem governantes. Episódicas expressões de consternação e/ou preocupação pela “crise mundial” não somente não são (definitivamente) suficientes senão que já não há mais tempo e nem motivos para este tipo de comportamento: a apatia, a inércia, a indiferença – chame-se como queira – de nossas instituições é um problema crônico e longevo que deveria fazer-nos reflexionar vivamente sobre o ponto de estancamento a que estas chegaram.

Assim que me preocupa a atitude dos que governam o País, uma vez que continuam a adotar uma “política de avestruz” contra os verdadeiros problemas que afligem a sociedade brasileira e uma “política sintomática” para combater uma crise que foram incapazes de antecipar e sanar uns efeitos que nem sequer são capazes de prever com exatidão. E nem se diga, ao melhor estilo kantiano, que em temas como esse o que conta são as “boas intenções”, porque a ação é a única prova fiável e fidedigna para valorar a intenção: se a ação nunca aparece ou é inapropriada, é muito provável que a intenção seja uma farsa.

O que realmente necessitamos hoje, e de maneira imperiosa – ao menos a maioria dos cidadãos -, é um renascimento da confiança, da virtude, da honradez, da liberdade e da segurança pública, sob pena de vermos completamente dilapidado nosso capital moral tanto como o financeiro. E embora se trate de um objetivo extremamente difícil (mas não impossível), esse renascimento somente poderá ser levado a cabo com um câmbio radical nos esquemas mentais de nossos governantes. Necessitam entender, de uma vez por todas, que não são os donos do País e nem representantes exclusivos de uma minoria de “bem aventurados”. São uns membros mais que, como todos, devem assumir compromissos e responsabilidades com a sociedade como um todo. 

Como deixa em evidência a histeria social, o que de fato está em jogo é a confiança, mas não a confiança puramente econômica. Fusionar bancos, assegurar depósitos e linhas de crédito, fazer reforma tributária, penalizar os dirigentes de instituições bancárias e socializar o risco não basta para o que realmente está fazendo falta porque a confiança de que necessita o cidadão brasileiro é, em última instância, política, e mais concretamente, democrática. Esse tipo de confiança de que carece o País é a principal forma de capital social, um reconhecimento do terreno comum no qual nos movemos como cidadãos. E nenhuma Medida Provisória, retórica presidencial, ministerial ou de nossos “representantes” no Legislativo podem suprir este déficit democrático de que ainda padecemos como cidadãos.

Porque o segredo da mão invisível não é o capital econômico senão o capital social. Adam Smith sabia que os sentimentos morais não são menos importantes para assegurar a riqueza das nações que os mercados de capital. A verdadeira crise de liquidez que se vive no Brasil é uma crise política; o déficit creditício é um déficit democrático. Porque a confiança em um Estado Democrático de Direito é o capital social que permite o reconhecimento e a garantia dos direitos, deveres e garantias assegurados a todo e qualquer cidadão , isto é, de viver em uma sociedade “livre, justa e solidária”.

Mas por onde se vê, parece que a sociedade brasileira, porque vive sob o manto perverso de um Estado impotente e ineficaz ( que continua a distribuir de forma tão grosseiramente desigual recursos, oportunidades e riqueza, e de forma tão incivil como escassa liberdade e segurança pública) , padece de um profundo e crônico problema de falta de confiança. É esta, pois, nossa verdadeira crise, crise que não apenas do presente , mas que desde há muito tempo nos atinge. Crise das mais graves que o País alguma vez já sofreu: o Estado a correr o risco de ser negado como Estado e a diluir-se por isso em intencionalidades e políticas ilegítimas em que se apaga a autonomia cidadã e, portanto, a si mesmo se anula.

Daí que já não mais resulta possível e legítimo dar por normal a extrema desigualdade social e econômica, a violência descontrolada e a impunidade dos “mais favorecidos”. Na mesma medida, resulta inútil continuar a depositar nossas esperanças nas boas intenções e nos inúmeros discursos ad hoc dirigidos a dar uma solução à “crise econômica” (local e mundial) porque, de uma maneira ou outra, seguro que não servirão de grande coisa. Parece haver chegado o momento de lutar contra e eliminar este tipo de prática política, a despeito das boas intenções, dos interesses corporativos e/ou políticos em jogo. Ser resiliente a práticas políticas unilaterais e ilegítimas, baixar a guarda do silêncio, aceitar às vezes fazer explosão ( para usar a expressão de Catherine Malabou) e ser ativo e não passivo com relação a nossos motivos e eleições ( isto é, sujeitos autônomos, na concepção de Harry Frankfurt) : isso é o que se deve fazer. É o momento de recordar que existem explosões que não são terroristas, como por exemplo as explosões de indignação.

Talvez se deva voltar a aprender a indignar-se, a rebelar-se contra certa cultura da docilidade, da submissão, da interferência arbitrária, da impotência e do conformismo, enfim, da eliminação de todo conflito, justamente agora que vivemos em um Estado em que no plano da política já enlouquecemos todos e se manejam cifras de escândalo como se se tratasse de uma troca de figurinhas em uma atividade que não mais ultrapassa sequer o umbral do trivial. Trata-se, ademais, de um compromisso (de luta) incondicional que cabe e deve ser assumido por toda a sociedade.

Lembrar a nossos governantes que se governa sobretudo por meio de uma participação e um compromisso integral dos dirigentes das instituições públicas estatais, que somente por meio de instituições permanentemente atuantes, vigilantes e eficazes é possível viabilizar o florescimento e o crescimento econômico e que a ausência de seriedade e honradez por detrás de qualquer atuação estatal condena qualquer tipo de política à ruína. Enquanto olvidemos essas verdades, o fracasso do Estado brasileiro continuará garantido. Perguntar-se “o que fazer com nossa falta de confiança” é, em boa medida e sobretudo, considerar a possibilidade de dizer não a um tipo de cultura “política”, econômica e mediática deplorável, de dissimulação e de exploração que parece só saber bazofiar o problema da “crise mundial”, apontar soluções ineficazes e consagrar o reino de indivíduos obedientes e “passivos” que não tem mais mérito que saber baixar a cabeçar, conformar-se e voltar a preparar-se para o próximo “problema mundial”.

Somente sob essa perspectiva de indignação ativa poderá vir o Estado brasileiro a afirmar-se como instituição preocupada com a dignidade cidadã, a liberdade e a segurança social, política e econômica, não somente controlando toda a desregrada maquinaria estatal em suas funções administrativas e legais ou “solucionando” a crise mudial, senão também assegurando de forma efetiva os princípios , direitos e garantias constitucionais. Em resumo, como diria Rawls, do que “deve ser” próprio da atividade de uma instituição justa.

É preciso reconhecer que enquanto houver indivíduos vivendo na miséria gerada pela total falta de oportunidades reais e com a permissão de outros – “no pior de todos os mundos possíveis”, para usar a expressão de Schopenhauer –, dignidade cidadã, ética, estabilidade econômica, liberdade e igualdade, não são para eles sequer meras possibilidade humanas. Mas se em realidade nada disso importa, pior para todos. Sem embargo, a mensagem que se deve enviar àqueles que estão governando é a de que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo: que a indiferença e a falta de uma adequada, constante e comprometida atuação estatal não é ( e não deve ser) a regra. Que a simples suspeita de que algo vai mal já constitui razão suficiente para ficar atento e pressionar os verdadeiros responsáveis por uma situação que já começa a acariciar os limites de situações socialmente degradantes, até averiguar o que efetivamente está ocorrendo. E que, depois de tudo, se obrará em consequência. Afinal, a história é nossa obra, ainda que não o sejamos plenamente consciente disso.

Seja como for, e considerando os estudos de Kahneman quanto aos componentes psicológicos que intervêm em todas as decisões econômicas, o melhor a fazer é começar por admitir como irrefutável a advertência de Horácio ( aliás, o lema da Royal Society of London): Nullius in verba ( “Não creias no que diz a gente, por mais autorizada que seja sua voz”).  

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Atahualpa Fernandez:  Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da Unama/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).

 


Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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