Assédio Sexual: um crime que ninguém quer ver

* Maria Berenice Dias –

    Indispensável que primeiro se arroste a realidade: 31% das brasileiras assediadas sexualmente perdem o emprego, 30% se calam e apenas 2,6% vão à Justiça, segundo pesquisa realizada pela Revista IstoÉ e publicada em 21/4/99. Sem que se tenha um levantamento sobre o resultado dos processos, inquestionavelmente o número é escasso ou quase nulo, o que deixa à mostra que o assédio sexual, além de não ser criminalizado, não vem sendo punido sequer como delitos outros e nem na esfera civil.

    A necessidade de manter o emprego, a humilhação e o constrangimento levam as mulheres – pois elas são as grandes vítimas – a se calarem e não referir o ocorrido sequer no âmbito familiar, por vergonha de contar o que aconteceu.

    A dificuldade de denunciar, de ir atrás da Justiça decorre de um componente de ordem histórica e cultural, refletido no Código Civil, que é de 1916, e no Código Penal, de 1940. Face à sacralização do conceito de família com uma feição patriarcal, nítida era a hierarquização entre o homem e a mulher. A esta restava o reduto doméstico, com a única função de criar os filhos, enquanto o espaço público era reservado aos homens. A mulher casada tinha sua capacidade reduzida e era desprovida do direito de autodeterminar-se. Sendo considerada como propriedade do marido, devia a ele submissão e respeito. Estava sujeita a uma verdadeira servidão sexual, não podia manifestar qualquer resistência ao contato sexual nem manifestar prazer.

    De outro lado, a preservação da virgindade, como símbolo de castidade e honestidade, era atributo indispensável para o casamento. Assim, os contatos sexuais, ainda que consentidos, ao serem descobertos, eram denunciados como tendo ocorrido mediante violência, como delitos sexuais, com a finalidade de resgatar a reputação da família. Por tal, nos processos decorrentes dos crimes contra os costumes – como eram catalogados -, questionava-se a palavra da vítima, cuja credibilidade restava comprometida.

    Difícil era a aceitação da versão da mulher, valendo em dobro o depoimento do homem.

    Com a evolução da sociedade e a emancipação feminina, quer pelo surgimento dos métodos contraceptivos, quer por sua inserção no mercado de trabalho, veio a Constituição Federal decantar os novos direitos assegurados à mulher, que passaram a ter visibilidade e a ser considerados como direitos humanos. A mulher adquiriu a liberdade de escolher seus parceiros e de decidir sobre seu corpo.

    O aumento da participação da mulher no espaço público deveria colocá-la em condições de igualdade, não se refletindo no âmbito do trabalho as diferenças dos papéis existentes na sociedade, descabendo persistir qualquer resquício de submissão que envolva uma questão de poder.

    Porém, como os homens ainda predominam nas chefias das empresas públicas ou privadas, passaram eles a usar uma nova maneira de obter favores femininos: a ameaça da demissão, da não-ascensão profissional.

    Como o assunto ainda é tabu, as mulheres calam por medo de não serem acreditadas. Além da dificuldade de denunciar, é também difícil comprovar. É a palavra de um contra a de outro, um homem frente a uma mulher, um superior ante um subalterno. Ao depois, existe um grave preconceito de que houve provocação por parte da vítima, acabando-se por investigar o comportamento da denunciante. Confunde-se liberdade sexual com a eliminação do direito de escolha, não se atentando em que as mulheres, por serem livres, não são disponíveis para todos.

    O certo é que as mulheres se calam por falta de mecanismos e espaço social que empreste credibilidade às suas palavras. É mister que o conceito de honestidade feminina não mais seja vinculado à sua atividade sexual e que se passe a acreditar que, quando ela denuncia, é porque foi vítima.

    Assim, impõe que se criminalize o assédio sexual. Também indispensável que haja a adoção de políticas de orientação e prevenção, como forma de inibir os comportamentos indevidos. É importante que os departamentos de recursos humanos das empresas e órgãos públicos sejam capacitados para servir como consultores e orientadores, a estimular a denúncia de fatos que podem caracterizar qualquer espécie de constrangimento ou aproximação indesejada.

    Por enquanto, a única lei que vigora é a lei do silêncio.

   


Referência Biográfica

MARIA BERENICE DIAS  –   Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, sendo Presidente da 7ª Câm. Cível; Membro efetivo do órgão especial do TJ, Professora da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presidente Nacional do IBDFam.

www.mariaberenice.com.br

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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