A solidariedade familiar e o dever de cuidado nas uniões homoafetivas

* Maria Berenice Dias

Justificativas e fundamentos

Tu te tornas eternamente responsável pelo que cativas. Essa frase da obra O Pequeno Príncipe, de autoria do pensador francês Saint-Exupéry, sintetiza, de maneira feliz, o fundamento do direito das famílias. Afinal, são os  laços de afetividade, fraternidade e solidariedade que justificam a construção de um ramo do direito voltado a vínculos de natureza matrimonial, parental e  assistencial.

O prestígio de que desfruta a família, no entanto, está muito mais ligado às enormes responsabilidades que são impostas a seus integrantes, em decorrência da sua origem: o afeto. Basta atentar que é da família o encargo de cuidar, formar, educar os futuros cidadãos.1 Igualmente, todos os que demandam algum tipo de cuidado, devem socorrer-se da entidade familiar a qual pertencem, que tem o dever de cuidar daqueles que não têm condições de prover a próprio sustento, como as pessoas especiais e os idosos.

O Estado, apesar de assegurar assistência, na pessoa de cada um de seus membros, para coibir a violência no âmbito de suas relações,2 coloca-se em posição para lá de confortável, assumindo posição subsidiária no que diz com crianças, adolescentes3 e pessoas idosas.4 De forma expressa a Constituição diz ser dever da família, da sociedade e do Estado – nesta ordem – assegurar, com absoluta prioridade, a convivência familiar das crianças e dos adolescentes. Igualmente é atribuído à família o dever de cuidado para com os portadores necessidades especiais e os idosos, pois só lhes é garantido benefício mensal, no valor de um salário mínimo, se os familiares não possuírem meios de prover-lhes a subsistência.5 Aliás, com relação aos idosos os programas de amparo são preferencialmente executados nos seus lares.6

Em face de todos esses ônus, é a família  considerada a base da sociedade e merecedora de especial proteção.7 No entanto, esse tratamento diferenciado se consubstancia na imposição de obrigações a seus membros: deveres conjugais, poder familiar e solidariedade parental.

O casamento gera para os cônjuges a obrigação de manterem vida em comum no domicílio conjugal e o dever de mútua assistência.8 Na união estável os companheiros devem obedecer aos deveres de lealdade, respeito e assistência.9 Todos esses encargos consagram o princípio da solidariedade afetiva, que nada mais significa do que recíproco dever de cuidado.

Do mesmo modo, o poder familiar imposto a ambos os genitores,10 – que é muito mais do que poderes, um rol de deveres11 – não desaparece quando da separação do casal ou no fim da união estável.12 Também permanece inalterado após o divórcio dos pais.13 Mesmo se qualquer deles constitui nova família, persistem os deveres e direitos parentais.14

Ampliação do âmbito de abrangência

Em um primeiro momento, somente era reconhecida a família constituída pelo casamento que, mais do que um contrato, era considerado uma verdadeira instituição.

Os filhos havidos fora do casamento – com o feio rótulo de ilegítimos, espúrios e bastardos – não podiam ser registrados pelo seu genitor. Ou seja, o homem que havia sido infiel e cometido adultério, acabava sendo beneficiado, pois não tinha responsabilidade de prover a subsistência da prole fruto das suas aventuras amorosas. Da mesma maneira, a repulsa às uniões extramatrimoniais deixava ao desabrigo legiões de mulheres, pois não lhes eram assegurados quaisquer direitos. Como não tinham a quem se socorrer, elas e seus filhos restavam em situação de vulnerabilidade social, o que gerava o dever do Estado de dar-lhes assistência.

Outro não foi o motivo que levou ao alargamento do conceito de família. Com a evolução dos costumes, o movimento libertário feminino, o afastamento da ideia religiosa do matrimônio como um sacramento, em muito aumentou o  número de pessoas fora do guarda-chuva protetor da célula familiar. Assim,  viu-se o Estado obrigado a admitir o divórcio, para dar chance às pessoas de voltarem a casar.

No entanto, continuavam existindo relacionamentos sem o selo do casamento, pois não mais estavam seus membros sujeitos à rejeição social.

Os pares, mesmo com a possibilidade de casar, optavam por não sacralizar as uniões, o que gerou a necessidade de serem constitucionalizadas outras estruturas de convívio.

Daí o reconhecimento da união estável.15  O surgimento do conceito de entidade familiar, além do limite do casamento, provocou o alargamento do conceito de família, movimento que, mais uma vez, beneficiou o Estado, que se viu livre dos encargos com relação a todos aqueles que não estavam ao abrigo da família matrimonializada.

Como as mulheres assumiram a maternidade sozinhas, criando os filhos sem a   participação do genitor, acabou reconhecida o que a doutrina passou a chamar de família monoparental: um dos ascendentes e sua prole.16 De outro lado, em face da existência de muitas crianças em situação de abandono,  gerando custos à sociedade para mantê-las, a forma encontrada para minimizar esse encargo, foi prestigiar a adoção e reconhecer os vínculos de filiação, independente da condição de casados dos pais.17 Com isso, houve a ampliação dos deveres decorrentes do poder familiar, livrando o Estado do dever de assegurar proteção integral, com absoluta prioridade, a esta população de desassistidos.

Ultrapassando as fronteiras do preconceito

Enorme a rejeição da igreja católica a todo e qualquer relacionamento que não atende ao seu interesse de expandir o número de fiéis. Não ministra o sacramento do matrimônio quando inexiste capacidade procriativa e admite a anulação do casamento ante a esterilidade do par. Ou seja, não abençoa a união de quem não cumpre o designo crescei e multiplicai-vos. Aliás, esta é a razão para, de modo absolutamente irresponsável, proibir quaisquer métodos contraceptivos e até excomungar quem promove a interrupção da gravidez    mesmo quando admitida pela lei.

A sacralização do casamento com finalidade exclusivamente reprodutiva  é que impõe a condenação às uniões de pessoas do mesmo sexo. Como gays  e lésbicas não podem gerar filhos, são considerados pecadores, o que lhes   impõe perversa rejeição social.

Alvos do ódio são vítimas de todo o tipo de manifestações homofóbicas, restando à margem tanto do convívio familiar como do sistema jurídico.

Apesar de os homossexuais manterem relacionamentos marcados por um elo de afetividade – tanto que passaram a ser chamadas suas uniões de homoafetivas18 – o preconceito resiste em identificá-los como entidade familiar.

Com isso restam à margem do direito das famílias e do direito das sucessões, acabando os parceiros por experimentar situação de absoluta fragilidade  jurídica.

As sequelas são inúmeras. Se os parceiros não constituem uma família, não há dever de mútua assistência, o que os desobriga da responsabilidade de um para com o outro. Igualmente,, sem presumir a participação paritária de ambos na construção do acervo patrimonial, inviável a divisão dos bens amealhados durante o período de convívio. Da mesma forma, não identificado vínculo jurídico entre ambos, nenhum direito é exigível com relação ao outro e, via de consequência, não há obrigações entre eles. Os alimentos servem de  exemplo. Se os parceiros não formam uma entidade familiar, não há dever alimentar a favor daquele que não tem meios de prover a própria mantença.19 A falta de reconhecimento da união afronta inclusive o direito constitucional à moradia20 pois, não dá para reconhecer como bem de família o imóvel que serve de residência ao casal.21

A total invisibilidade imposta às uniões homoafetivas não provoca restrições meramente de natureza patrimonial. As mais significativas restrições são de ordem existencial. Ao não serem identificadas como entidade familiar, não há quaisquer prerrogativas de natureza parental ou assistencial aos parceiros do mesmo sexo.

É total o isolacionismo a que ficam expostos no que diz aos deveres de cuidado, onde mais se evidencia o absoluto despropósito em face da rejeição de que são alvo. A falta de reconhecimento da união impede que um seja nomeado curador do outro em caso de incapacidade, pois esta prerrogativa é assegurada ao cônjuge, ao companheiro,22 aos ascendentes ou a algum parente.23

Mas há mais. Em caso de hospitalização em unidades de tratamento intensivo, não é franqueado ao parceiro o direito de visita. Não pode autorizar a prática de alguma intervenção e nem lhe é permitido decidir sobre a manutenção dos suportes da vida ou deliberar sobre a doação de órgãos.

Mesmo depois da morte, persistem as exclusões, eis que o parceiro não é nomeado inventariante24 e nem tem direito real de habitação, com referência à residência do casal.25  Não é herdeiro necessário26 e nem integra a ordem de vocação hereditária.27

O patrimônio, amealhado ao longo de anos de uma vida comum, acaba em mãos de parentes distantes que, muitas vezes, nem conviviam com o falecido por hostilizarem sua orientação sexual. O parceiro sobrevivente resta sozinho e sem nada.

Essas situações de absoluta vulnerabilidade a que ficam sujeitos os parceiros, pelo só fato de manterem vínculo afetivo que refoge ao modelo da heteronormatividade não mais se justificam em uma sociedade democrática e pluralista, que prima pelo respeito à dignidade. A Constituição Federal, ao consagrar os princípios da igualdade e da liberdade, não permite discriminações e preconceitos com relação a significativa parcela da população por ter orientação sexual de incidência minoritária. A diferença não pode ser fator de exclusão. Deve, isso sim, servir para justificar a adoção de ações afirmativas como mecanismos protetivos. Afinal, o maior dever do Estado é o de cuidar e proteger seus cidadãos, cada um deles, pois todos têm o direito constitucional à felicidade, que só pode ser alcançada quando assegurado o direito de amar.

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NOTAS

1. CF, art. 229: Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

2. CF, art. 226, § 8º: O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

3. CF, art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

4. CF, art. 230: A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas dosas,  assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

5. CF, art. 203, V: a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

6. CF, art. 227, § 1º: Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente  em seus lares.

7. CF, art. 226: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

8. CC, art. 1.566: São deveres de ambos os cônjuges: II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência.

9. CC, art. 1.724: As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de  lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.

10. CC, art. 1.631: Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.

11. CC, art. 1.634: Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I – dirigir-lhes a criação e educação; II – tê-los em sua companhia e guarda; III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V – representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI – reclamá-los de quem  ilegalmente os detenha; VII – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

12. CC, art. 1.632: A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.

13. CC, art. 1.579: O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos.

14. CC, art. 1.588: O pai ou a mãe que contrair novas núpcias não perde o direito de ter consigo os filhos, que só lhe poderão ser retirados por mandado judicial, provado que não são tratados convenientemente.

15. CF, art. 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

16. CF, art. 226, § 4º: Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

17. CF, art. 226, § 6º: Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

18. Neologismo que cunhei na primeira edição de minha obra, União Homossexual, o preconceito e a Justiça, no ano de 2000.

19. CC, art. 1.694: Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.

20. CF, art. 6o: São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

21. Lei 8.009/90, art. 1º: O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

CC, art. 1.711: Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não  ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.                

22. CC, art. 1.775: O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é, de direito, curador do outro, quando interdito.

23. CC, art. 1.775, §1o: Na falta do cônjuge ou companheiro, é curador legítimo o pai ou a mãe; na falta destes, o descendente que se demonstrar mais apto.

24. CPC, art. 990.

25. CC, art. 1.831: Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

26. CC, art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

27. CC, art. 1.829.

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA               

MARIA BERENICE DIAS: Advogada, Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM, Desembargadora aposentada do TJ-RS.

 


Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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