A proteção do consumidor e a negativação nos bancos de dados

* Leonardo Freire Pereira

Sumário:  Introdução. 1. Relações de consumo e práticas abusivas de cobrança. 2. A proteção do consumidor em Juízo: as obrigações de fazer e não fazer e a indenização decorrente do abuso. 3. A morosidade em favor do inadimplente. 4. A questão da prescrição das dívidas no novo Código Civil. Conclusões. Referências bibliográficas

 


                              Introdução 

Não é de hoje que a sociedade repulsa o uso da força na solução de conflitos de interesse. A autotutela representa, assim, uma maneira arcaica do indivíduo buscar seus direitos.

 Pois bem, não obstante esse sentimento objetivo do homem médio, os consumidores têm sido submetidos a práticas abusivas de cobrança, como se determinados fornecedores fossem os verdadeiros detentores do poder jurisdicional, em condutas coativas que se assemelham à autotutela. Para tanto, se utilizam de bancos de dados que mantêm informações pessoais de cada um de nós, sob os auspícios da proteção financeira dos fornecedores.

O trabalho que ora se inicia objetiva, pois, discutir a legitimidade da atuação desses bancos de dados e os limites de sua “jurisdição”, bem como sopesar os bens jurídicos envolvidos nessas relações, quais sejam: (a) o direito dos fornecedores manterem um cadastro de inadimplentes; (b) o direito à preservação da intimidade dos consumidores; e, (c) o direito judicante avocado pelos bancos de dados.

 A questão não é simples e apresenta várias nuances, às quais procuraremos identificar a partir da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor e, principalmente, dos princípios gerais do Direito.

 Por ser dirigido a um público diversificado, que varia entre acadêmicos e agentes do direito, houvemos por bem encarecer as notas de rodapé, nas quais enunciamos as abreviaturas utilizadas[1], transcrevemos as mais importantes referências legislativas trazidas à tona, além de comentários conexos e indicações bibliográficas que acreditamos complementar esse trabalho.     

1.  Relações de consumo e práticas abusivas de cobrança  

 A instabilidade econômica que tomou conta do Brasil até meados dos anos 90 – se é que dali em diante a economia se estabilizou – aumentava sensivelmente o índice de inadimplência nos negócios realizados, pois, em pouco tempo, a situação financeira dos contratantes podia degringolar por completo.

 Não restava aos comerciantes outra alternativa, que não a troca de informações sobre seus devedores. Essa necessidade impulsionou a criação e o desenvolvimento das Associações Comerciais, que num primeiro momento eram as centralizadoras das informações cadastrais daqueles que descumpriam suas obrigações perante o comércio, evitando novas frustrações a outros comerciantes[2].

 Inegável a pertinência desses cadastros, como é igualmente inegável, a necessidade de se controlar suas atividades, mormente em razão do caráter público que lhes é conferido por lei[3]. Amilton Plácido da Rosa, Promotor de Justiça do Consumidor em Campo Grande (MS), sustenta que “os arquivos de consumo desempenham uma função positiva na sociedade de consumo. Mas, como toda a atividade humana, estão sujeitas a abusos, e, por isso, devem ser controlados[4], sendo que uma das limitações é temporal: 

“Cuida o Código, em particular, do fenômeno da cobrança extrajudicial de dívidas e da inserção e do uso de informações em bancos de dados e em cadastros, intentando, de um lado, elidir constrangimentos decorrentes de ações ameaçadoras, levadas a efeito por credores afoitos ou agressivos, e, de outro, obviar a circulação de informes indevidos sobre a pessoa do consumidor e de sua posição sócio-econômica e evitar o sacrifício eterno de seu crédito na praça, limitano em cinco anos a permanência dos registros.[5]

 Atualmente, a Serasa – Centralização dos Serviços dos Bancos – e o SPC – Serviço de Proteção ao Crédito – são os principais bancos de dados responsáveis pela atribuição da pecha de “caloteiro” às pessoas.

 Não restam dúvidas que o poder de negativar o nome das pessoas, sobretudo em tempos de grande evolução tecnológica e troca irrestrita de informações entre os cinco continentes, confere a esses órgãos um poder paralelo capaz de constranger alguns a pagar até o que não devem. Aqui a autotutela; aqui o uso da força; aqui a lesão às garantias constitucionais do direito de resposta[6], da inafastabilidade do controle jurisdicional[7], do juiz natural[8], do contraditório e da ampla defesa[9], enfim, vários princípios decorrentes do devido processo legal[10]

O Código de Defesa do Consumidor, na mesma esteira, proíbe práticas abusivas de cobrança[11], mas estabelece regras muito superficiais para a atuação dos bancos de dados (art. 43), o que mantém os consumidores submetidos ao arbítrio, tendo que buscar, junto ao Poder Judiciário, o restabelecimento de seus direitos de personalidade. 

Convém destacar que o singelo art. 43 prescreve, em seu § 2o, que “a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele”, o que costuma ser seguido pelos bancos de dados, mas não pode ser considerado, em hipótese nenhuma, respeito ao contraditório e à ampla defesa. Em sã consciência, seria lógico bater às portas do Judiciário para questionar a negativação de valor indevido, mas irrisório? O custo e a morosidade do processo judicial respondem essa indagação[12]

Noutras palavras, o simples aviso enviado pelo correio – diga-se de passagem, em envelope padrão, cujo conteúdo é mais do que previsível e, portanto, não resguarda o sigilo da correspondência – impõe ao “condenado” a fama de mal pagador e, por conseguinte, o obriga liquidar o valor que lhe é apresentado como devido. Do contrário, sua vida comercial está destruída: o devedor perde o talão de cheques, o cartão de crédito, não consegue financiamento, enfim, está entregue à marginalidade financeira. 

Quantos pequenos “débitos” são quitados, mesmo não sendo reconhecidos pelos ditos inadimplentes? Quantas dívidas são majoradas a bel prazer do credor e, então, refinanciadas em condições imorais? Quantas? E o “devedor”, para “limpar o nome” o mais rápido possível, aceita tudo que lhe é imposto, com o que volta a fazer jus a um status de fiel pagador de contas.  

2.  A proteção do consumidor em Juízo 

É evidente que essa atuação abusiva pode – e deve – ser repelida de maneira eficaz, o que jamais ocorreria por via de ação ordinária individual. Assim, a atuação do Ministério Público, legitimado para defender os interesses difusos[13], tem vital importância tanto para reclamar condenação pecuniária capaz de refrear o ímpeto dos bancos de dados, quanto para impor-lhes obrigação de fazer ou não fazer. 

“Segundo o magistério de Ada Pellegrini Grinover, a hipótese enquadra-se no disposto no artigo 586, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil, que contempla a condenação genérica como aquela que, reconhecendo em definitivo o direito, há de ser liquidada para ‘estabelecer o quantum, ou o facere ou o non facere’ ”.[14]

 A via da Ação Civil Pública[15], que produz efeitos erga omnes encurta o tortuoso caminho, “objetivando a indenização de um grupo maior de pessoas indeterminadas ou não identificáveis, por ofensa de ordem patrimonial ou moral”[16]

“Defiro a tutela antecipada para determinar ao réu Serasa, quanto a pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas em qualquer parte do território nacional, que: 1. Retire (obrigação de fazer), em 48 horas, de seu banco de dados todos os registros de débitos que estão sendo discutidos judicialmente, de qualquer forma, quanto à existência ou extensão da dívida; 2. (obrigação de fazer) Às pessoas, quer com registros atuais, quer a cada novo registro, que tenham o direito de requerer a suspensão da negativação do nome, se vierem a discutir em qualquer juízo a dívida; 3. Abstenha-se (obrigação de não fazer) de fazer registros de débitos que estejam, de qualquer forma, em qualquer instância, sendo discutidos judicialmente, até o trânsito em julgado final da eventual decisão.”[17] 

Essa é a linha de raciocínio pacífica de nosso Superior Tribunal de Justiça: 

SPC. SERASA. CADIN. Exclusão do registro. Liminar. Pendência de ação ordinária.

Não cabe a inclusão do nome do devedor em bancos particulares de dados (SPC, CADIN, SERASA) enquanto é discutido em ação ordinária o valor do débito, pois pode ficar descaracterizada a inadimplência, causa daquele registro.

Recurso conhecido, pelo dissídio, e provido para deferir a liminar.

STJ, REsp 188390/SC (199800678549) – 4ª T. – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – v.u. – j. 04.02.99

 

Cobrança de dívida. Cautelar. É lícito se defira, liminarmente, a medida cautelar, para impedir, durante a discussão em ação, a inscrição do nome do devedor no SERASA, ou no SPC. Precedentes do STJ: dentre outros, o REsp 161.151. Recurso especial conhecido e provido em parte.

STJ, REsp 186214/MG (199800619224) – 3ª T. – Rel. Min. Nilson Naves – v.u. – j. 19.11.98[18]

O que se observa, portanto, é o indiscutível direito do suposto devedor não ser lançado no rol dos inadimplentes, enquanto discute judicialmente se a dívida existe de fato, ou, ainda, qual o efetivo quantum debeatur

Assim, a obrigação de fazer consiste em comunicar os consumidores, por escrito, a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo (CDC, 43, § 2o), e a de não fazer, em excluir e deixar de incluir, em seus arquivos, informações de consumidores que estejam discutindo suas dívidas judicialmente. 

                              Outro remédio colocado à disposição dos consumidores para conhecimento e retificação de informações pessoais constantes de bancos de dados com caráter público é o habeas data[19]. Ocorre que a eficácia desse writ, cujo rito vem disciplinado pela Lei 9507/97, é assaz objetável[20], eis que as medidas cautelares atenderiam os mesmos fins. Mesmo o mandado de segurança[21], não fosse seu caráter residual, acolheria tais pretensões. 

 

                            Dircêo Torrecillas Ramos, ao tratar do habeas data, identifica sua redundância no rol dos chamados remédios constitucionais: 

“A temeridade do abuso e rigor nas interpretações das regras constitucionais e, mesmo, o desrespeito à Constituição, encontram amparo no Mandado de Segurança e, se este não for suficiente, o habeas data também não o será, tanto para o conhecimento quanto para a retificação de informações.”[22] 

Quanto aos danos decorrentes dos gravames indevidos assiste aos consumidores a propositura de ação indenizatória. Nesse particular, Milton Paulo de Carvalho é explícito: “Repugna à consciência humana o dano irreparado”[23]. Logo, se existe dano, existe dever de indenizar. 

“O Código de Defesa do Consumidor estabelece como direitos básicos do consumidor, entre outros, o acesso aos órgãos judiciários com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais e a facilitação da defesa de seus direitos.”

TJSP, 11a Câm. – ApCiv. – Rel. Guido dos Santos – j. 21.10.93 – JTJ-LEX 150/161 

A doutrina tradicional aponta dois gêneros de danos, os materiais – também chamados patrimoniais – e os imateriais – extrapatrimoniais –, sendo que os primeiros constituem prejuízos de natureza econômica, e os últimos, os de natureza não econômica. Poder-se-ia, ainda, mencionar as hipóteses de dano imaterial com reflexos materiais e vice versa.[24] 

Nesse contexto, a título de exemplificação, sofre dano imaterial – na espécie moral – o indivíduo que tem o crédito negado diante de amigos ou familiares, pois foi exposto ao ridículo, por gravame indevido; sofre dano material – na espécie lucro cessante – o taxista cujo nome foi indevidamente negativado e, portanto, não pode financiar peças para consertar seu veículo e colocá-lo em funcionamento; experimenta dano imaterial – na espécie psíquica –, com reflexo material – na espécie lucro cessante – o vendedor que, indevidamente taxado de inadimplente – deixa de cumprir suas metas, por conta da preocupação que o assolapa e dos transtornos que tem passado para resolver o problema. 

Afora a imprecisão técnica de muitos de nossos julgados, a jurisprudência tem zelado pelo espírito dos danos acima descritos sob a pura dicotomia material-moral, deixando patente que a ocorrência de dano imaterial independe da de material. 

A questão do dano moral puro espelha aquele que não tem reflexo econômico algum. A prova do dano moral independe da prova de dano material, mas há necessidade, para que se configure esse dano, que o nome da pessoa ofendida tenha sido exposto indevidamente; sua honra afetada de forma tal que provoque a existência de dor, depressão, as vezes até mesmo perda da alegria de viver, que necessita ser indenizada pelo ato culposo do ofensor, ou até doloso, conforme o caso.”

2o TACivSP, ApCiv. 527.892 – 12ª Câm. – Rel. Juiz Roberto Midolla – j. 22.10.98 

“A indenização pelo dano moral independe do prejuízo econômico.” 

TAMG, ApCiv. 0182669-3 – ac. 6004 – 2ª Câm. – j. 04.10.94[25]    

Dentre as alternativas para ingresso do consumidor em juízo, além das ações individuais citadas, Amilton Plácido da Rosa aponta que os efeitos da condenação do ofensor na Ação Civil Pública são genéricos, não assegurando, de imediato, o direito das vítimas. Seguindo a doutrina de Ada Pellegrini Grinover, verifica que a condenação limita-se a fixar a responsabilidade e o dever do ofensor indenizar todas as suas vítimas, sendo que os efetivos danos 

“serão apurados e qualificados em liquidação de sentença, movida por cada uma das vítimas, com posterior execução e recebimento da importância correspondente à sua reparação. A condenação faz-se, portanto, pelos danos causados, mas em termos ilíquidos, e o pagamento a cada credor corresponderá exatamente aos danos sofridos."[26]

3. A morosidade em avor do inadimplente

Pois bem, se a morosidade do Judiciário pode causar enormes prejuízos ao inadimplente cujo nome foi negativado, o que pensar do comércio em geral, que pode ficar concedendo crédito a devedores contumazes, que passam anos (muitos!) discutindo suas pendências em Juízo. Como proteger o comércio daqueles que se utilizam de todo ardil procrastinatório e levam seus litígios até o Supremo Tribunal? 

Eis o nó górgio da questão. O Ministério Público e o Poder Judiciário, na proteção de direitos fundamentais, podem acabar por favorecer o locupletamento. 

“Os direitos humanos fundamentais não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco para o afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.”[27] 

Numa basilar linha de raciocínio, Manoel Gonçalves Ferreira Filho já identificava que “do princípio da igualdade pode-se também deduzir a necessária proporção entre os meios e os fins”[28]. Daí a necessidade de análise caso a caso, o que não ocorre na Ação Civil Pública. 

Basta observar o caso concreto mencionado na [17], onde uma decisão liminar, proferida em 1999, mantém os devedores que discutem seus débitos em juízo longe dos cadastros de inadimplentes. Quantos fornecedores foram deliberadamente prejudicados ao longo de todo esse tempo? Quem deveria indenizá-los, o Estado, pela morosidade do Judiciário[29]? Se a resposta à ultima questão for afirmativa, em última análise, o custo dessas indenizações recairia sobre quem não contribui para o resultado danoso dessa letargia, ou seja, nós, contribuintes. 

                       4.  A questão da prescrição das dívidas no novo Código Civil [30] 

A égide do novo Código Civil não deixaria de lado as relações de consumo e, uma de suas alterações, atinge o objeto do presente estudo, qual seja, a diminuição dos prazos prescricionais para a cobrança de dívidas e a conseqüente exclusão das inscrições negativas nos bancos de dados, o que ocorria após cinco anos[31] e, agora, dois anos antes[32]

Nessa situação, o fornecedor que vende a crédito deve exercer seu direito de ação contra o consumidor inadimplente em, no máximo, três anos. Vale ressaltar exceção a essa regra, quando a negociação decorre de contrato escrito[33], o que, convenhamos, representa um diminuto percentual nas relações típicas de consumo. 

Clarividentes os textos legais, a discussão que se trava nesse momento não é, portanto, aquela que diz respeito ao prazo prescricional, mas sim à contagem desse prazo nas relações intertemporais, o que o legislador procurou disciplinar no art. 2.028[34], mas não foi suficientemente enfático, deixando uma lacuna enorme a cargo da jurisprudência, porque 

“a interpretação literal levará ao absurdo de possibilitar que um ato ilícito praticado logo após a vigência da lei nova, gere uma pretensão cuja prescrição vai terminar bem depois do que terminaria se tivesse iniciado onze anos antes da lei nova. É ilógico!”[35]. 

Esse comento diz respeito às ações de reparação de danos – cujos prazos prescricionais foram reduzidos de vinte para três anos, mas mostra-se adequado às relações de consumo, sendo certo que

“Estabelecendo a nova lei um prazo mais curto de prescrição, essa começara a contar da data da nova lei, salvo se a prescrição iniciada na vigência da lei antiga viesse a completar-se em menos tempo, segundo essa lei, que, nesse caso, continuará a regê-la, relativamente ao prazo.”[36] 

No que concerne as relações de consumo, se o devedor contraiu, há mais de dez anos[37], obrigação oriunda de contrato, o prazo para que o credor promova a cobrança continua sendo de vinte anos[18], pois mais da metade do prazo prescricional já se esvaiu. Noutro sentido, se a mesma obrigação foi contraída há menos de dez anos, o prazo prescricional segue a nova regra, ou seja, cinco anos. 

Em sentido contrário, Roberto Alves Horta, não aceita a revogação dos citados dispositivos da Lei do Consumidor, pelo novo Código Civil. 

“De início devemos enfatizar que, as estipulações acima não se contradizem, porquanto, o novo Código Civil trata de prazo prescricional (3 anos) para haver o recebimento de um título de crédito (novos), na mediada em que, o inciso em comento, excepcionou os títulos de crédito anteriores e criados por lei especial, e o Código de Defesa do Consumidor, cuida de prazo para repasse de informações para fins de crédito, logo, os seus objetivos e natureza jurídica são bem diferentes.”[39] 

Na hipótese, o doutrinador fundamenta sua assertiva na proteção constitucional ao ato jurídico perfeito[40]. Tal interpretação parece similar àquela que autoriza os condomínios que estabeleceram multa por atraso superior aos dois por cento permitidos atualmente[41], antes da vigência do novo Código, continuarem cobrando o quanto foi convencionado, pois o contrário violaria o mesmo princípio constitucional.

A situação não é, entretanto, idêntica. Na primeira, o que se discute não é o ato jurídico representado pela emissão do cheque, mas o direito do credor executar aquele título de crédito, ou seja, a limitação do novo Código atinge, única e tão-somente, seu direito de ação. Na outra, o que se discute é a convenção condominial revestida de agente capaz, objeto lícito e forma prescrita em lei (CC1916, 82). Há dissensão, afinal, acerca das duas situações, o que não poderia ser diferente, pois estamos tratando de relações intertemporais e muito haverá, ainda, que ser discutido a esse título. 

Conclusões 

Em síntese, não há como tratar do tema de forma genérica. O Judiciário deve ter um cuidado especial, analisando caso a caso. De um lado, os bancos de dados e suas práticas abusivas, que devem ser coibidas; de outro, a grande maioria dos devedores, que sofre as conseqüências do arbítrio; num obtuso lado da relação, aqueles poucos que se aproveitariam da proteção destinada ao grupo anterior, para perpetuar seus golpes. 

Percebe-se, logo, que o título – conclusões – tem cunho meramente metodológico. Não há como ser diferente! A contraposição do direito de cada parte envolvida nessas questões não nos permite, de fato, concluir. 

Toda pessoa tem direito de saber com quem está negociando; toda pessoa tem direito ao contraditório e à ampla defesa; todo comerciante tem direito de se proteger dos maus pagadores; todo indivíduo tem direito à proteção da intimidade e ao sigilo das informações pessoais; todos têm direito à indenização por quaisquer danos sofridos … 

Enfim, diante desses paradoxos, quê direito deve prevalecer? Quem deverá ser beneficiado pelas novas regras da prescrição? Alexandre de Moraes afirma que, havendo o conflito entre direitos fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, em busca do verdadeiro significado da norma[42], o que representa uma ampla margem discricional ao magistrado, que nem sempre decidirá a partir de elementos objetivos. 

Indicações Bibliográficas

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STOCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua interpretação jurisprudencial, 4. ed. São Paulo : RT, 1999.


[1]

a.                 ano

A:                autor

ac.               acórdão

ApCiv.         Apelação Cível

Câm.           Câmara

CC               Código Civil vigente (L 10.406/02)

CC1916       Código Civil revogado (L 3.071/16)

Ccom          Código Comercial (L 556/1850)

CDC            Código de Defesa do Consumidor (L 8.078/90)

CF               Constituição Federal vigente

cf.               conferir

Des.            Desembargador

ed.              edição, editora

j.                 julgado em

LACP          Lei da Ação Civil Pública (L 7.374/85)

Min.             Ministro

n.                 número

[n.  ]             nota

p.(pp.)          página (s)

R:                 réu

Rel.              Relator

REsp            Recurso Especial

STJ              Superior Tribunal de Justiça

T.                 Turma

TACivSP      Tribunal de Alçada Civil de São Paulo

TAMG          Tribunal de Alçada de Minas Gerais

TJDF            Tribunal de Justiça do Distrito Federal

TJSP            Tribunal de Justiça de São Paulo

v.                  ver, volume

v.u.               voto único

 

[2] cf. Carlos Adroaldo Ramos Covizzi. Práticas abusivas da SERASA e do SPC, Bauru : Edipro, 1999, pp. 13-21, que identifica, a partir do final da década de 50, o impulsionamento das atividades econômicas e o incentivo ao consumo e à concessão de crédito, como fatores desencadeantes da crise de inadimplência que se instalaria duas décadas depois.

[3] CDC, 43, § 4o. Os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidade de caráter público.

[4] Ação civil pública relativa ao Serviço de Proteção ao Crédito. Jus Navigandi, Teresina, a. 2, n. 23, jan. 1998. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/pecas/texto.asp?id=74>.

[5] Carlos Alberto Bittar. Direitos do Consumidor, 4. ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1991, pp. 42-43.

[6] CF, 5o, V. É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.

[7] XXXV. A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.

[8] LIII. Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.

[9] LV. Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.

[10] LIV. Ninguém será provado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

Particularmente em relação ao devido processo legal, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Código de Processo Civil comentado. 6. ed. São Paulo : RT, 2002, p. 24) mencionam ser “… postulado fundamental do direito constitucional, do qual derivam todos os outros princípios. Genericamente a cláusula due process se manifesta pela proteção da vida-liberdade-propriedade em sentido amplo.”

[11] CDC, 42, caput. Na cobrança de débitos o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

[12] É evidente que as pessoas cujos nomes são indevidamente negativados têm direito à indenização pelo dano decorrente do ato ilícito praticado pelo banco de dados, discussão que enfrentaremos mais adiante. Todavia, o que se pretende destacar nesse ponto é o descrédito ao qual o processo judicial está entregue, o que representa terreno fértil para todo e qualquer abuso. No mesmo sentido: v. Clovis Brasil Pereira, A Justiça morosa, o advogado e a cidadania. ProLegis, Guarulhos, mar. 2003. Disponível em <http://www.prolegis-cursosjuridicos.kit.net/PROLEGIS-66.htm>.

[13] CF, 127, caput. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis.

CDC, 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I. interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II. interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III. interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I. o Ministério Público.

II. a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;

III. as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;

IV. as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear.

[14] Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, 4. ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1995, p. 533, apud Amilton Plácido da Rosa [n. 4].

[15] v. Lei 7.347/85 (LACP).

[16] Rui Stoco. Responsabilidade Civil e sua interpretação jurisprudencial, 4. ed. São Paulo : RT, 1999, p. 255.

[17] Tópico final de decisão liminar proferida nos autos da Ação Civil Pública 1999/00056142-0 – A: Ministério Público Federal – R: Serasa – 22a Vara Cível Federal da Seção Judiciária de São Paulo.

[18] No mesmo sentido: REsp 189061/SP (199800694668) – 4ª T. – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – v.u. – j. 03.12.98; REsp 180843/RS (199800492488) – 3ª T. – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – v.u. – j. 29.06.99; REsp 180665/PE (199800488391) – 4ª T. – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Ferreira – v.u. – j. 17.09.98.

[19] CF, 5o, LXXII. Conceder-se-á habeas data (a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público, e (b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.

[20] Em sentido contrário: Carlos Alberto Bittar, op. cit. p. 45.

[21] CF, 5o, LIX. Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas-corpus ou habeas-data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

[22] Dircêo Torrecillas Ramos. Remédios Constitucionais, 2. ed. São Paulo : WVC, 1998, p. 51.

[23] Noções de Responsabilidade Civil aplicáveis ao tráfico jurídico moderno, in Um olhar sobre ética e cidadania, Reflexão acadêmica 2. São Paulo : Mackenzie, 2002, p. 73.

[24] cf. meu Direito à integridade psíquica, in Revista de Direito UnG, n. 2, Guarulhos : UnG, 2000, pp. 77-86.

[25] No mesmo sentido: TAMG, ApCiv. 251177-9 – 1ª Câm. – Rel. Juiz N. Silva – j. 10.03.98; TAMG, ApCiv. 0226279-9 – ac. 10.431 – 3ª Câm. – j. 13.11.96; TAMG, ApCiv. 0253434-7 – ac. 18503 – 3ª Câm. – j. 06.05.98; TJDF, ApCiv. 4232096 – ac. 105418 – 5a T. – Rel. Des. José Dilermando Meireles – j. 07.05.98.

[26] Ada Pellegrini Grinover, op. cit. p. 563, apud Amilton Plácido da Rosa [n. 4].

[27] Alexandre de Moraes. Direitos Humanos Fundamentais, 3. ed. São Paulo : Atlas, 2000, p. 46.

[28] Direitos Humanos Fundamentais, São Paulo : Saraiva, 1995, p. 111.

[29] Josivaldo Félix de Oliveira. A Responsabilidade do Estado por ato lícito, São Paulo : Habeas ed, 1998, p. 87: “se o juiz causar prejuízo a alguém, p. ex., por demora na prestação jurisdicional, o Estado responderá patrimonialmente”.

[30] A esse respeito vale conferir: Thiago José Ferreira dos Santos, A prescrição à luz do novo Código Civil e a manutenção de inadimplentes em órgãos de restrição de créditos. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 64, abr. 2003. Disponível em <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3955>; Roberto Alves Horta. O SPC, o novo Código Civil e Código do Consumidor. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3850>.

[31] CDC, 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no artigo 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.

§ 1º. Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a 5 (cinco) anos.

§ 5º. Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores.

[32] CC, 206, § 3o, VIII. Prescreve em três anos a pretensão para haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial.

[33] § 5o, I. Prescreve em 5 (cinco) anos a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes constante de instrumento público ou particular.

[34] CC, 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já tiver transcorrido mais da metade do tempo da lei revogada.

[35] Alan Martins e Antônio Borges de Figueiredo. Prescrição e decadência no Direito Civil, Porto Alegre : Síntese, 2002, p. 50.

[36] Idem, p. 49, em citação a Antônio Luís da Câmara Leal.

[37] Lapso temporal contado, retroativamente, da data de vigência do novo Código Civil, ou seja, 11 de janeiro de 2003.

[38] CCom, 442. Todas as ações fundadas sobre obrigações comerciais contraídas por escritura pública ou particular, prescrevem não sendo intentadas dentro de 20 (vinte) anos.

[39] O SPC, o novo Código Civil e Código do Consumidor [n. 30]

[40] CF, 5o, XXXVI. A lei não prejudicará a coisa julgada, o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.

[41] CC, 1.336, § 1o. O Condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o débito.

[42] cf. Direitos Humanos Fundamentais, pp. 46-47.


Referência Biográfica
Leonardo Freire Pereira   Advogado. Procurador-Chefe Municipal em Guarulhos. Especialista em Direitos da Cidadania. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, na condição de bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES/MEC. Professor de Direito Constitucional e Prática de Direito Público na Universidade Cruzeiro do Sul – Unicsul. Professor de Ciência Política e Direito Constitucional na Universidade Guarulhos – UnG. Professor de Direito Constitucional do Prolegis Cursos Jurídicos. Presidente da Associação de Defesa do Consumidor de Guarulhos – ADECON. Coordenador dos cursos de atualização profissional da Secretaria de Assuntos Jurídicos da Prefeitura de Guarulhos. Membro da Associação Brasileira dos Constitucionalistas – Instituto Pimenta Bueno.  leofreirepereira@mackenzie.com.br. 
*artigo publicado em 01 de junho de 2006.

 


 

Redação Prolegis
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ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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