“A Constituição Patrimonial Privada”

* Donata A. Campos de Barros

NOÇÃO DE CONSTITUIÇÃO PATRIMONIAL PRIVADA

Uma abordagem da obra  A Constituição Patrimonial Privada, de Antonio Menezes Cordeiro. Coimbra : Almedina, 1998. 

Constituição formal e constituição material

A doutrina fala em Constituição em vários sentidos mas os dois mais significativos são: a constituição formal e a constituição material.

Para o autor, a constituição formal é “a fonte ou o conjunto de fontes identificáveis por possuírem uma determinada característica exterior, a que se convenciona, em determinado momento histórico, chamar constituição” (é o texto legal, aprovado com determinadas formalidades e que exige requisitos especiais para a sua modificação) e, o sentido material, “constituição é a fonte ou conjunto de fontes que estruturam e legitimam determinada ordem jurídica, instituindo o poder político e estabelecendo os direitos fundamentais dos particulares”. 

O autor funde os dois conceitos dizendo que o essencial da constituição material está contido na constituição formal e por isso passa a tratar somente como constituição os aspectos materiais essenciais, formalizados constitucionalmente. Explica ainda que não define constituição como conjunto de normas ou princípios porque norma é tarefa a ser realizada caso a caso, por meio da interpretação e constituição é fonte da qual o intérprete extrairá, mediante recursos e regras determinadas, as normas constitucionais.

·   Normas e princípios constitucionais

O autor explica que normas constitucionais são normas jurídicas que se extraem da Constituição e os Princípios constitucionais são os que podemos induzir da fonte constitucional, através da interpretação científica, da interpretação e da sistematização.

Segundo ele, a norma traduz um comando que verificadas as condições nela previstas, se dirige a determinado sujeito. Ela é extraída da fonte pela interpretação. Já o princípio induz-se de fontes e normas pela construção e sistematização científicas.

O autor explica que não pode haver normas jurídicas igualmente válidas e contraditórias num ordenamento jurídico, porém, pode haver e há princípios válidos e contraditórios, e a escolha de um deles para um caso concreto, dependerá de cuidadosa ponderação efetuada à luz de outros princípios e normas.

Ele dá como exemplo insanável uma norma que designasse, pela Constituição, que a Assembléia da República devesse ter 150 membros. Depois, seria acrescentada à essa mesma Constituição que o número de mebros deveria ser definido pelo Governo. Seria isso, então uma contradição insanável, pois somente uma das normas poderia ser válida.

No entanto, a Constituição consagra, lado a lado, os princípios da igualdade e da propriedade privada, que pode ser entendido como contraditório. Contudo os dois princípios são considerados válidos, prevendo a própria Constituição várias formas de harmonização entre eles.

Diz o autor, que um sistema jurídico logicamente acabado, mesmo que somente um esboço, só pode ser conseguido recorrendo-se a normas e princípios.

·   Normas preceptivas e normas programáticas

A distinção entre elas é o que, para o autor, tem maior importância para o conceito de constituição patrimonial privada:

a)     preceptivas são normas de aplicação imediata;

b)     programáticas são as normas de aplicação diferida (procrastinada ou retardada) e mediata (depende de outra coisa) pois implicam a elaboração de outras regras capazes de as tornar exeqüíveis e efetivar sua vigência. As normas programáticas dirigem-se ao legislador ordinário e não dão lugar a direitos subjetivos.

O autor cita Grisafulli, ao dizer que as normas programáticas estão próximas dos princípios gerais do Direito, dos quais são, muitas vezes meras explicitações, embora sejam, para todos os efeitos, verdadeiras normas jurídicas.

·   O direito patrimonial privado

Cordeiro considera privado o Direito que regula situações da vida social, cujos sujeitos são desprovidos de poderes de autoridade. Ele distingue Direito Público de Direito Privado usando o critério subjetivo-material isto é, o Estado pode atuar como sujeito de situações privadas, bastando para isso que não esteja revestido de ius imperii (direito soberano). Nesse caso, a sua conduta é regida pelo Direito Privado.

No Direito Privado, distingue-se o Direito Patrimonial do Direito não Patrimonial.

O Direito Patrimonial Privado regula situações de conteúdo econômico e suscetíveis de avaliação pecuniária, ao contrário do Direito Privado não Patrimonial que regula situações que, não tendo conteúdo econômico, não são avaliáveis pecuniariamente.

Cordeiro cita Paulo Cunha, ao afirmar que a suscetibilidade da avaliação pecuniária obedece a critérios empíricos e extra-jurídicos pois uma situação terá natureza econômica quando seja como tal reconhecida pelo sentir geral da sociedade em que o caso concreto esteja acontecendo. Por isso, não existe um critério uniforme de avaliação pecuniária: a natureza patrimonial tem de ser aferida de acordo com as concepções dominantes em cada tipo de sociedade.

O autor chama de propriedade privada, os direitos subjetivos de natureza patrimonial.

Em sentido técnico-jurídico, propriedade designa o direito real cuja regulamentação consta dos artigos do Código Civil. Num sentido amplo, o termo traduz os diversos direitos de conteúdo patrimonial.

·   Noções de Constituição Patrimonial Privada: a sua Natureza Interdisciplinar

Ele aproxima as noções de Constituição e de Direito Patrimonial Privado e propõe o conceito de Constituição Patrimonial Privada que será: ”o conjunto sistematizado de normas e princípios dirigidos à regulamentação de situações jurídicas privadas de conteúdo econômico e que constam de determinada Constituição”. 

     Metodologia e Fontes

Quanto à Metodologia, pergunta-se qual a maneira de ordenar o material que integra a constituição patrimonial privada. O autor responde que uma das maneiras seria a de isolar da Constituição tudo o que sobre patrimônio fosse encontrado.

Um método por ele preferido seria partir das normas constitucionais que expressamente se dirigissem ao estatuto patrimonial privado e, a partir delas, extrapolar a constituição patrimonial. Recorrer-se-ia às restantes normas e princípios, na medida em que fosse necessário a integração, a orientação e a complementação do que ele chama de material recolhido.

A sistematização do material recolhido seria feita do seguinte modo:

NIVEL PRECEPTIVO (imediato):

Na área formal

–   fontes da normas patrimoniais

–   interpretação das fontes patrimoniais

–   estrutura da norma patrimonial

–   aplicação e sanções das normas patrimoniais.

Na área substancial

–   conteúdo da norma patrimonial

NÍVEL PROGRAMÁTICO

Na área substancial

–   conteúdo programático da norma patrimonial

·   Disposições constitucionais patrimoniais

O autor menciona, como exemplo, os preceitos constitucionais que mais têm relevância para o direito patrimonial privado, como o Direito de Propriedade Privada, Setores de Propriedade dos Meios de Produção, Iniciativa Privada.  Outros seriam Tarefas Fundamentais do Estado, Princípio da Igualdade, Garantias e condições de efetivação e Organização Econômica.

O autor menciona vários antecedentes históricos da Constituição Portuguesa até chegar nos dias de hoje, para justificar sua proposição.

NÍVEL PRECEPTIVO (aplicação imediata) – ÁREA FORMAL

Fontes do Direito Patrimonial

·   Segundo Cordeiro, a Constituição Portuguesa só pode ajudar indiretamente porque remete os termos do direito do direito è propriedade privada e a sua transmissão por vida ou por morte para a própria Constituição.

·   Quanto ao Princípio da Igualdade, o autor conclui que a situação patrimonial das pessoas só pode ser afetada por ato genérico ou seja, por ato perante o qual todos os cidadãos nacionais ( e nos casos previstos em norma também os estrangeiros e apátridas) se apresentem como iguais. Isso quer dizer que ou o ato atinge a todos como iguais ou será inconstitucional.

·   Quanto aos costumes, somente o Estado pode produzir atos genéricos desse tipo, pelo que, as fontes do direito material deverão estar compreendidas na noção de lei material, que deve ser entendida como disposição genérica proveniente de órgão estadual competente.

·   A Interpretação da Lei Patrimonial

A constituição não contém expressamente quaisquer regras de interpretação de fontes em geral ou da lei em especial. No entanto, as regras de interpretação constam de normas jurídicas em sentido próprio pois, nos casos concretos, a resolução se à luz de determinadas normas, que são as normas aplicáveis e é justamente a interpretação que permite descortinar quais são essas normas, as chamadas aplicáveis e as interpretativas.

Nesse ponto, o autor entende que as regras de interpretação devem estar inseridas no sistema de fontes em cuja ordem jurídica se integrem. 

A constituição patrimonial prescreve, como fontes do direito patrimonial, diplomas não inferiores a leis, decretos-leis ou decretos-regionais, concluindo-se, assim, que a interpretação patrimonial não pode constar de regras inferiores e, assim, entende-se que somente as leis federais podem dispor sobre a interpretação das fontes patrimoniais.

·   Estrutura do comando patrimonial

O comando abstrato se compõe de previsão e estatuição.

–   previsão quando descreve determinado evento, prevendo a sua eventual ocorrência;

–   estatuição associa à verificação dessa ocorrência certos efeitos em termos do dever ser. A descrição da ocorrência prevista ou dos efeitos estatísticos pode ser feita de 3 formas:

1)     descrição casuística de eventos – são os comandos concretos, ou seja, perde-se a natureza de norma por falta de generalidade;

2)     descrição de categorias conceituais abstratas – são normas jurídicas comuns;

3)     descrição tipológica de eventos , pela indicação dos seus traços específicos – é a tipicidade normativa.

A exigência de generalidade (porque a lei material é fonte de direito patrimonial)  exclui a regulamentação mediante descrições casuísticas.

Ao contrário do que acontece na matéria patrimonial, a Constituição ordena a estrutura das normas de outros ramos do direito. Assim, a tipicidade é obrigatória no Direito Penal ou Tributário, por exemplo

·    A Aplicação da norma patrimonial: as Sanções

São normatizadas pelo Código Civil, nos campos de aplicação do tempo e do espaço. Usando do mesmo raciocínio quanto às normas da interpretação, o autor entende que as disposições em vigor só podem ser alteradas, no tocante ao direito patrimonial, por leis federais. Ele diz ser este um princípio geral implícito na constituição patrimonial.

NÍVEL PRECEPTIVO (imediato): ÁREA SUBSTANCIAL

·   O Controle da norma patrimonial

Aqui o autor fala do ponto de partida da constituição patrimonial que é o preceito: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação econômica ou condição social”.

Este é um princípio fundamental do direito com especial incidência no campo patrimonial ou seja, todos devem ter iguais direitos patrimoniais.

·    A propriedade privada

A Constituição garante a todos o direito à propriedade privada, e a sua transmissão em vida ou por morte. O sentido exato desse preceito está de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo 17.

O autor diz que o direito de propriedade privada, tal como resulta da constituição patrimonial, é um direito econômico, conferido por igual a todos os cidadãos e em termos de não poder ser arbitrariamente afetado. A determinação do seu âmbito é feita por exclusão de partes, razão que leva o autor a abordar outros tipos de propriedade.

Quanto ao setor público, o autor o define como sendo composto pelos bens e pelas unidade de produção coletivizados sob diversos modos sociais de gestão e explicita, nos termos da Constituição, quais são os bens e meios de produção que devem estar, obrigatoriamente, na titularidade do Estado e sob alguma forma de gestão, inclusive o setor cooperativo e seus princípios.

NÍVEL PROGRAMÁTICO (mediato)

·    Normas e Princípios Programáticos

Sobre este assunto, o autor diz que é nos Princípios Fundamentais que reside o sentido do desenvolvimento do nível programático constitucional, podendo-se dividi-los em dois grupos que se respeitam:

1)     O problema da transição para o socialismo

2)     A questão da apropriação de riquezas.

Sobre esses grupos,  o autor diz que estão evidentemente interligados mas que mesmo assim não consegue precisar juridicamente o que seja socialismo, deixando para a Ciência Política proceder à tal análise. Ele diz que o princípio programático essencial em matéria patrimonial é a apropriação coletiva dos principais meios de produção, devendo o Estado socializá-los.

Quanto à indenizações, o autor fala que a coletivização de bens e meios de produção é feita normalmente em detrimento do setor privado, mas que a Constituição preceitua “justa indenização”, para manter um equilíbrio patrimonial entre os diversos setores e não na pura e simples privação do direito de propriedade privada, até porque a constituição Portuguesa tem natureza de direito econômico e não de direito fundamental, na acepção liberal.

Quanto ao que o Autor chama de Plano e Circuitos Comerciais, diz que uma economia de mercado, dominada pela apropriação privada dos bens produtivos, funciona automaticamente de acordo com leis econômicas cuja autonomização de deve sobretudo aos trabalhos realizados pelos economistas liberais.

No que tange à posse útil e a propriedade social, o autor entende que não são inteligíveis as duas noções separadamente, embora as explique assim, por exclusão de partes:

–     a posse útil não é a gestão

–     a posse útil não é a propriedade

–     a posse útil não é a posse em sentido técnico real e

–     a posse útil não é um usufruto  ou um domínio útil de tipo enfitêutico.

O que o autor diz é que a posse útil designa o direito que os trabalhadores das unidades de autogestão têm de exercer sobre os meios e bens nelas integrados os poderes necessários à sua exploração. Diz ainda ele, que trata-s e de um novo tipo de direito patrimonial, mas que incompreensível fora do âmbito da autogestão.

·     PERFIL E SENTIDO DA CONSTITUIÇÃO PATRIMONIAL PRIVADA

No nível preceptivo, a área formal da constituição patrimonial implica,  como fontes únicas, a lei, o decreto-lei e o decreto regional, sem prejuízo de uma parte reservada à leis federais.

As normas patrimoniais privadas podem estatuir com recurso a conceitos abstratos ou mediante previsões típicas, competindo a sua aplicação aos tribunais.

No nível programático, a propriedade privada é delimitada no seu âmbito, pelos dispositivos constitucionais que prevêem a integração da riqueza mais significativa da sociedade, através da coletivização em geral e da reforma agrária em especial, para junto com o governo, atingir a meta que é a propriedade social.

·   Sentido da Constituição Patrimonial Privada

Ela consagra com precisão um setor reservado à atividade econômica dos particulares, tratado pelo direito Privado, não podendo haver ingerências extra-jurídicas, nem atuações estaduais autoritárias sem prejuízo das exceções constitucionais. No interior do setor reservado ao Direito Privado deve imperar a igualdade, no sentido lato do termo.

O sentido último da constituição patrimonial privada é preservar a esfera dos particulares da ingerência arbitrária do poder público, através do direito Privado.

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[i] Cordeiro, Antonio Menezes. A Constituição Patrimonial Privada. Coimbra : Almedina, 1998. 


 

Referência  Biográfica

Donata A. Campos de Barros – Professora Universitária, mestranda e secretária geral da Ouvidoria Pública da    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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